segunda-feira, 19 de março de 2018

A menina dos fósforos

              
             
Isto foi num desses países onde a neve cai durante o tempo de inverno – e fazia um horrível frio naquela noite do ano.
            Dentro do frio e dentro do escuro da noite a menina lá seguia, de pés descalços pela cidade deserta. Descalça? Sim. É verdade que saíra de casa com um par de chinelas muito grandes para seus pés, pois tinham sido de sua mãe. Ao atravessar a rua, porém, teve de correr para desviar-se duma carruagem na disparada, e perdeu as chinelas; quando voltou para procurá-las, viu que um moleque havia apanhado um pé, saindo a correr com ele na mão. “Vou fazer um berço desta chinela!”, dizia ele. O outro pé não foi possível encontrar – com certeza sumiu enterrado na neve pelas patas dos cavalos.
            Por isso lá ia a menina de pés nus e já azuis de frio. Era uma vendedeira de fósforos, do tempo em que os fósforos se vendiam soltos e não em caixa; no avental trazia uma porção deles e na mão um punhadinho. Mas ninguém lhe compraria ainda um só, e lá se ia ela. Tiritando de frio, sem um vintém no bolso. Verdadeiro retrato da miséria, a coitadinha!
            Flocos de neve recobriam seus cabelos cor de ouro, todos cacheados, sem que a menina desse por isso.
            Em muitas casas a luz do interior saía pelas janelas misturada com um saboroso cheiro de ganso assado – porque era dia de São Silvestre, dia em que todos que podem comem um ganso assado.
            Em certo ponto a menina sentou-se encolhidinha rente a uma parede e cruzou os pés debaixo na saia. Nada adiantou. Sentiu-os mais enregelados ainda. Como não tivesse vendido nenhum fósforo não se animava a voltar para casa. Sem dinheiro no bolso estava proibida de aparecer lá.
            Seu pai com certeza que a surraria – além disso, o frio era lá tanto como ali. Uma casa velha, de teto esburacado e paredes rachadas por onde o vento entrava zunindo.
            Suas mãozinhas começaram a perder os movimentos.
            Teve uma ideia: acender um daqueles fósforos para aquecer os dedos encolhidos. Assim fez. Riscou um fósforo na parede – chit! Que luz bonita e que agradável quentura! O fósforo queimava qual velinha, com a chama defendida do vento pela sua mão em concha. Que bom! A menina sentia como se estivesse sentada diante de um grande fogão, com ferro para mexer as brasas e uma caixa de lenha ao lado. Tão agradável aquele calorzinho do fósforo, que ela espichou o pé para que também aproveitasse um pouco – mas nisto a chama foi morrendo e afinal apagou-se. Só ficou em sua mão um toquinho carbonizado.
            A menina riscou outro fósforo, e à luz dele a parede da casa a que estava encostada tornou-se transparente como um véu, deixando ver tudo quanto se passava lá dentro. Estava posta uma grande mesa, com toalha alvíssima e prataria de porcelana; no centro, um ganso recheado de maças e ameixas, que recendia um perfume delicioso. De repente o ganso ergueu-se da travessa e, ainda com a faca e o garfo de trinchar espetados no papo, veio na direção dela.
            Nisto o fósforo apagou-se e tudo desapareceu. A menina riscou outro fósforo, e imediatamente se achou sentada debaixo da mais bela árvore de Natal que seus olhos tinham visto nas casas de brinquedos. Mil velinhas ardiam na ponta dos galhos, e os enfeites pendurados pareciam olhar para ela. Mas esse fósforo também foi se apagando, e à medida que se ia apagando a árvore de Natal ia crescendo, crescendo, e as velinhas subindo até ficarem como estrelas no céu. Uma delas caiu, traçando um longo risco de luz.
            – Alguém está morrendo, pensou a menina com a ideia em sua avó. A boa velhinha fora a única pessoa na vida que lhe dera amor, e costumava dizer que quando uma estrela cai é sinal de que alguém está morrendo e com a alma a ir para o céu.
            A menina acendeu outro fósforo – e desta vez o que apareceu foi a sua própria vovó, brilhando como um espírito e com o mesmo olhar meigo de sempre.
            – Vovó! Exclamou ela. Leve-me consigo! Eu sei que a senhora vai sumir-se quando este fósforo chegar ao fim, como aconteceu com o ganso recheado e a linda árvore de Natal...
            E para que isso não acontecesse a menina tratou de acender um fósforo atrás do outro, sem esperar que a chama morresse. Era o meio de conservar a vovó perto de si
            E os fósforos foram ardendo com luz brilhante como a do dia, e sua vovó nunca lhe pareceu tão bela, nem tão grande. Foi-se chegando, tomou a netinha nos braços e com ela voou, radiante, para onde não há neve, nem frio mortal, nem fome, nem cuidados – para o céu.
            No outro dia encontraram o corpo da menina encolhido na calçada, com as faces roxas e um sorriso feliz nos lábios. Havia morrido de fome e frio na última noite daquele dezembro.
            O sol do novo ano veio brincar sobre o pequenino cadáver. Em sua mãozinha rígida estavam ainda os fósforos que não tivera tempo de acender. Os passantes olhavam e diziam: “A coitada procurou aquecer-se com os fósforos”, mas ninguém suspeitou as lindas coisas que ela viu, nem o deslumbramento com que começou o ano novo em companhia de sua avó.

(Novos contos de Andersen. Tradução e adaptação de Monteiro Lobato. 6. Ed. São Paulo: Brasiliense, 1968. P. 16-21